segunda-feira, 4 de março de 2013

Retrato de feira.


Ventava. Mas ainda era possível suar. Um suor acumulado do calor de um dia inteiro, calor de encher balde em ritmo inversamente proporcional ao das horas, mortas de preguiça de passar. Era final da tarde e sobrava suor.
A mulher usava blusa de mangas compridas. Roxa. O cabelo era branco, encaracolado, uma lã. Um quadro que fingia frio e não enganava ninguém. Céu azul, azul. Sol tinindo.
O homem vestia camisa do Corinthians. Num banquinho ao lado, uma blusa do Barcelona sob um melão - com preço e tudo registrado nele de caneta piloto azul - que impedia que o vento que salvava a vida (minha) a levasse.
Menti. Não era um banco o que aparava a blusa e melão. Era uma caixa de som. Um brega antigo, desconhecido e de letra inusitada fazia a trilha sonora.
Estavam todos ali encostados à beira do rio. As costas para o pôr do sol, as caras voltadas para a feira do Ver-O-Peso: a mulher, o Corintiano, a caixa de som, a blusa e o melão.
Eles não eram um casal. Inusitados como a letra do brega, ela lhe fazia as unhas dos pés, e ele tomava cerveja refestelado enquanto lhe arrancam as cutículas. Mais naturais que o pôr do sol que acontecia ali, alaranjado e absurdo, todo santo dia. 
Não eram inusitados coisa nenhuma! "Inusitado" é palavra minha intrometida na cena feito intervenção de cientista em aldeia de gente feliz.
Durou um pôr de sol, cinco bregas e três cervejas aquele fazer de unhas. Escurecido o cenário, uns braus centígrados a menos, a manga comprida roxa da Pedicurie ambulante pôde até fazer algum sentido. O melão foi suspenso para o Corintiano se travestir de Barcelona e estar pronto, de unhas feitas, para o outro pedaço de dia que faltava acontecer.
Pagou em moedas, eu pude ver. E "desachei" que era pouco no segundo seguinte em que havia achado porque a mim nada cabia achar ali.
Poderia contar que dancei o último brega que ouvi daquela caixa de som com melão em cima, como se eu fosse também personagem natural à cena. Mas não contarei.
Poderia contar de um banco de pedra à beira do rio construído com dois lugares, assentos grudados e encostos um de frente para o outro, feito mesmo pra se namorar. Um de frente pra feira, outro de frente pro sol, um de fronte pro outro. Mas não é isso que vou contar.
Vou contar que, com o Barcelona refeito, um moço da mesa ao lado parou a Pedicurie, sacou o pé da sandália e tascou-lhe à sua visão noturna. As moedas guardadas, o banquinho de baixo do braço e as cutículas passadas arremessadas ao rio, ela disse algo que o brega não me permitiu ouvir e seguiu caminho.
E aqueles pés ficariam para o próximo pôr do sol.

Belém, Feira do Ver-O-Peso, 11 de novembro de 2012.